Era o ano de 1914. O então Presidente do Estado de Mato Grosso, o Dr. Joaquim Augusto da Costa Marques, baixou a Resolução n° 686, de 26 de junho de 1914, ampliada um ano depois pela lei n° 707 de 15 de julho de 1915, favorecendo ao coronel Antônio Mota Moreira, com a Concessão Estadual para explorar as jazidas minerais, metais e metalóides, fósseis minerais etc, existentes no Vale do rio das Garças e seus afluentes, desde as cabeceiras até à sua foz no rio Araguaia, mais de setenta léguas de extensão.

Pouco antes de baixar esta resolução, quando ainda estava sendo formado o processo com exposição de motivos que justificasse o ato do Presidente do Estado, por força das exigências burocráticas regimentais, deveria fazer parte do mesmo, o parecer favorável do Diretor da Repartição de Terras, Minas e Colonização, na ocasião, o engenheiro-agrônomo Dr. José Morbeck, nomeado por ato do mesmo Presidente. (Ato n° 462, de 28/01/1913, Doe. Registrado no livro AB n° 13 do Arquivo Público de Mato Grosso-Cuiabá).

Morbeck ficou entre a cruz e a espada; dar um parecer favorável à tão absurda Concessão, feria a todos seus princípios de dignidade e decência. Além do mais, ele estaria ajudando a despojar os garimpeiros, a maioria dos quais seus conterrâneos, das jazidas de diamantes que eles mesmos descobriram e nas quais trabalhavam para sustento próprio e de seus familiares.

Dr. Joaquim Augusto da Costa Marques
Governou Mato Grosso no período de 15/8/1911 a 15/8/1915. Autor da lei que despojava os garimpeiros de suas jazidas diamantíferas do Garças, em favor da famosa Concessão, que as transferia à multinacional representada pelo coronel Antônio Moreira.

Morbeck tinha fazenda no Garças e conhecia de perto o sofrimento daquele povo, que vinha do Maranhão, de Minas Gerais, da Bahia e de tantos outros lugares, viajando à pé ou à cavalo, por estes sertões, sofrendo toda sorte de miséria e de dificuldades, na esperança de encontrar um lugar onde pudesse se estabelecer e prosperar. Quando estas pessoas encontram um “El Dorado”, seria justamente ele, um daqueles a destruir-lhes a realização dos seus sonhos e das suas esperanças?

Por outro lado, se recusasse dar o seu parecer favorável, prejudicaria os interesses particulares do Presidente do Estado, o que vale dizer que seria demitido sumariamente. De um lado os escrúpulos e sentimentos, do outro lado, o castigo. Preferiu o castigo.

Já prevendo as consequências, Morbeck caprichou no seu parecer. Mas, não foi o parecer favorável esperado pelo Presidente e pelo coronel Antônio Mota Moreira, foi antes, um parecer contrário àquela absurda Concessão. Além disso, deixou vazar o vergonhoso sigilo da repartição, o que foi um prato cheio para os jornais.

Como já era previsto, o Dr. Morbeck, foi demitido sumariamente a bem do serviço público, da disciplina e da moralidade administrativa. (Ato n° 540, de 01/4/1913 -Reg. no livro AB n° 13 do Arquivo Público de Mato Grosso – Cuiabá-MT).

 

Três anos depois, por despacho do então Presidente do Estado, o general Caetano Manoel de Farias Albuquerque, no dia 04/09/1916, foi retirado do ato de demissão de Morbeck, a nota: “a bem do serviço público e da moralidade administrativa.”

O Dr. Joaquim Augusto da Costa Marques nomeou outro Diretor do Departamento de Terras, Minas e Colonização, que deu parecer a seu conteúdo. Então a resolução foi baixada e a Lei que a ampliava, sancionada.

O ato corajoso de Morbeck foi punido com a demissão injuriosa mas, em compensação, ele ganhou a simpatia do Senador Azeredo, Presidente do Senado Federal e do general Cândido Mariano da Silva Rondon, o que futuramente foi-lhe muito útil. Também ganhou maior confiança e admiração dos garimpeiros que passaram a considerá4o seu grande benfeitor e líder.

No dia 22 de janeiro de 1918, assume a Presidência do Estado, o Bispo de Prusiade, Dom Francisco de Aquino Corrêa.

Nos anais históricos de Mato Grosso, pouco se lê sobre a Concessão, mas ao analisarmos as providências tomadas por Dom Aquino, percebe-se que desde o início do seu Governo já era sua intenção fazer cumprir a vergonhosa Lei da Concessão. A tarefa não era fácil, muito menos para um piedoso Bispo, eleito num movimento de conciliação política. Antes dele dois Presidentes de Estado sucederam ao Dr. Joaquim Augusto da Costa Marques e, por medo ou por escrúpulo, nem sequer falaram na tal Concessão. Executar aquela Lei era problema delicado e melindroso, com implicações circunstanciais agravantes, internas e externas.

Vejamos algumas delas:

 

1° – Além de Presidente do Estado, D. Aquino era um piedoso Bispo e como tal, despejar mais ou menos 15.000 pessoas que perderiam suas casas e frentes de trabalho, poderia prejudicar seu conceito e reputação; 2o-Os garimpeiros eram pessoas simples, rudes e humildes, mas também não lhes faltava coragem para defender suas casas e suas frentes de trabalho; 3o – os garimpeiros já tinham um grande líder, o Dr. José Morbeck; 4° O Presidente do Estado de Goiás teimava em anexar as terras da região de garimpo ao território goiano, podendo, no caso de conflito entre os garimpeiros e o Presidente do Estado de Mato Grosso, ajudar discretamente os garimpeiros, inclusive com armas.

Usando um pouco de raciocínio, e o do Bispo era bastante privilegiado, a solução foi finalmente encontrada e o plano, discreto e cuidadosamente montado.

A primeira providência de Dom Aquino, foi acertar os limites de Mato Grosso com Goiás e, entre outras medidas, mandou também chamar o líder dos garimpeiros, o agrônomo José Morbeck, a quem ofereceu dez contos de réis, quantia considerada vultosa naqueles tempos, para realizar um plebiscito na região questionada pelos dois Estados, para saber dos seus habitantes a preferência de pertencerem a Mato Grosso ou a Goiás. O pagamento dos dez contos de réis deveria ser feito logo após a realização do plebiscito.

O agrônomo aceitou a oferta e realizou o plebiscito com resultado favorável para Mato Grosso, o que só foi conseguido graças ao seu prestígio e influência, pois os garimpeiros se relacionavam muito bem com as autoridades goianas, das quais recebiam benevolências. Morbeck nem de longe suspeitava que um dos motivos porque foi escolhido para fazer o plebiscito, era justamente intrigá-lo com as autoridades goianas, que nunca mais o viram com bons olhos.

A primeira parte do plano foi concluída com sucesso, atingindo, dentro do programa, todas as metas previstas. Faltava a segunda parte, isto é, preparar a força policial deixando-a de prontidão; decretar o prazo para os garimpeiros evacuarem a área e, na suspeita de qualquer reação, deslocar imediatamente para lá um policiamento ostensivo, capaz de reprimir sem demora qualquer insurreição.

Quanto à atuação do governo, seria considerada como estrito cumprimento do dever na execução de uma lei já sancionada por administração anterior. Se a lei era injusta, cruel, absurda ou imoral, cabia ao Judiciário julgá-la. Ao Executivo, cumpria tão somente executá-la.

Entretanto, eis que, providencialmente, chega à capital do Estado o Dr. José Morbeck. Ele viera a Cuiabá receber os dez contos de réis que lhe eram devidos pela realização do plebiscito e, na oportunidade, requereria 500 mil hectares de terras para a formação de sua fazenda Patagônia.

D. Aquino recusou-lhe o pagamento dos dez contos de réis e ainda negou deferimento ao seu requerimento de terras, – sem maior explicações.

Por conclusão ou por intuição, Morbeck percebeu logo que o momento não permitia qualquer alteração, pois poderia ser imediatamente preso por desacato à autoridade; percebeu também que os dez contos de réis tinham ido para o espaço e o melhor que tinha a fazer era ir embora logo. Assim, calado ficou e calado voltou para o Garças. Lá chegando, tratou logo de alertar os garimpeiros para a ação ameaçadora, até então mantida em segredo. A revolta foi geral.

 

Ciente de que os garimpeiros haviam sido alertados e já se preparavam para o que desse e viesse, o Presidente abriu o jogo, porém, tarde demais.

Foi nesta época que se tornou famoso o telegrama mandado pelo Dr. Morbeck ao Presidente D. Aquino: “Ou cai a Concessão ou arrebenta a Revolução”. O Bispo engoliu a seco a ameaça e ficou calado, certo de que, a esta altura dos acontecimentos, a Concessão também já tinha ido para o espaço.

Em sucessão a D. Aquino, assumiu a administração estadual, no dia 22 de janeiro de 1922, o coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa que um ano depois baixou o Decreto n° 635, de 12 de maio de 1923, considerando caduca, como de fato se tornara, a vergonhosa Concessão.

Apesar de tanto burburinho, nada ocorreu de mais grave, mas a Concessão que vigorou como lei até a publicação do decreto do Dr. Pedro Celestino, jamais vigorou na prática, impedida que fora por Morbeck e seus garimpeiros.

Do episódio da Concessão mal sucedida, o Dr. Morbeck já saiu como herói e se aproveitou para criar a Liga Garimpeira, que tinha como chefes o próprio Dr. Morbeck, Carvalhinho, Salvador da Hora, Leonardo Cortes, Ondino Lima e Cândido Soares (ou coronel Candinho).

No Garças, as questões internas ou externas deveriam ser resolvidas pela Liga Garimpeira, cujos membros deviam ser eleitos em Assembléia Geral dos Garimpeiros, através do voto declarado.

Esta entidade, cujos estatutos regimentais desconhecemos, provavelmente porque nunca existiram, deveria conhecer, estudar e analisar, para depois decidir sobre os problemas, de qualquer ordem, afetos à comunidade garimpeira. Entretanto, o Dr. Morbeck presidente, por declaração de poderes dos demais membros, ou não, era quem resolvia tudo, por iniciativa própria e isolada, conforme bem lhe aprouvesse.

Para facilitar o controle da região, à medida em que iam surgindo novos povoados ou núcleos garimpeiros, Morbeck mandava para esses lugares os seus representantes. Os principais subchefes eram: Em Bandeira, Manoel Balbino de Carvalho, conhecido como Carvalhinho (seu compadre e sócio numa casa de comércio); em Lageado, Cândido Soares Filho, conhecido como coronel Candinho, substituto eventual do chefe; em Cassununga, Quincas Laborão e nos garimpos das Pombas, Reginaldo de Melo.

A história do velho leste mato-grossense e, em particular a do Garças, já não podia mais ser contada sem mencionar, em cada capítulo, o nome do Dr. José Morbeck, o grande líder dos garimpeiros. É bem possível que a vida deste poderoso chefão transcorresse na obscuridade e no anonimato se, ao invés dos sertões leste mato-grossenses, ele tivesse escolhido viver nas selvas de pedras e de concretos das grandes metrópoles. Também o Garças poderia ter sucumbido, ainda na sua tenra infância, vítima da ambição de governantes sem escrúpulos e transformado em possessão de multinacionais, não fossem a coragem, a dignidade e a liderança de Morbeck na defesa da autonomia deste torrão de bravos.

Por um capricho da providência, na época mais propícia, surgiu o Garças e para lá foi o Dr. Morbeck já formado em engenharia; se conheceram e se juntaram numa simbiose perfeita, ora se alimentando da seiva um do outro ora se protegendo mutuamente, ambos evoluindo numa recíproca de amores e numa troca de favores. É o que veremos a seguir no desenvolvimento histórico do velho leste mato-grossense.