Do livro: “Memórias de um Pau de Arara”
Autor:  Antônio Paulo da Costa Bilégo

Parte do discurso feito por Paulo Antônio da Costa Bilégo no lançamento do livro “Memórias de um Pau de Arara”, dia 29/05/10 em Barra do Garças – MT
Boa noite!

São 19 anos, 05 meses, 29 dias e 10 horas de uma ausência física que dói muito!

Que saudades …

Sua passagem para o oriente eterno nos deixou um vazio muito grande, mas que compreendemos e aceitamos. Nossa matéria nesse plano terrestre é finda.

Antes de falar propriamente do pai, do esposo, do avô e do bisavô, por fim, do criador, quero falar da sua criação, que é esta obra de sua história verdadeira que passamos às mãos da sociedade barra-garcense e de seus amigos espalhados por este vasto Mato Grosso.
Quero, em particular, dizer-lhes da minha enorme responsabilidade de dirigir-lhes, em nome da nossa família, nossos agradecimentos por estarem presentes prestigiando este evento e nos brindando com suas amizades, espero não decepcioná-los.
Que a emoção e esta grande atribuição não sejam limites para dizer-lhes o quanto me sinto orgulhoso deste momento. Vou deixar a modéstia de lado.

Esta obra, que através de uma ação de minha querida mãe e do grande amigo e irmão José Mario Guedes Miguez se tornou realidade, retrata a vida do meu pai desde o nordeste ressequido, onde as injustiças sociais ainda hoje perduram, passando pelo vale do Araguaia às grupiaras do garças, onde o diamante ainda hoje teima em aparecer, até chegar à fundação da Barra do Garças. Retrata com fidelidade as lutas do garças, onde os irmãos nordestinos se digladiaram por uma causa justa. A ocupação dos garimpos de diamante.

Nem sempre compreendidos pelo governo de Mato Grosso, que chegou a rotulá-los como bandidos e homens rudes, esses trabalhadores visavam simplesmente o sustento de suas famílias e fugir de uma miséria instalada nos rincões da onde haviam partido em busca de novos horizontes. Isso, enquanto aquele visava somente a arrecadação de impostos provenientes da lavra diamantífera.

É a história. Não a estória.

Escrita por quem dela participou e viveu. Que rende glórias ao seu comandante maior, Dr. Morbeck. Rende glórias a Raimundo Lima, Silvano Marajá, Ondino Rodrigues Lima, Cristiano Côrtes e seus irmãos Félix e Pedroca.

Homens destemidos e valentes, verdadeiros líderes de um tempo muito adverso, onde só os fortes venciam. Mais, sua obra relata.

Introdução:

Nunca tive a pretensão de ser escritor, isto seria perder a noção do ridículo. Apenas, por sugestão de amigos, resolvi publicar anotações que fiz dos acontecimentos que julgo mais importantes na região. O meu livro é puramente a história de Barra do Garças, seu povoamento, sociologia, folclore e, principalmente, as revoluções do Garças. Descrição onde tento provar os motivos que levou-nos a travar armas com o Governo do Estado, onde fomos confundidos com bandidos comuns, o que não éramos. Apenas queríamos um lugar ao sol.

Vínhamos de um Nordeste onde o superpovoamento, agravado pelas estiagens periódicas, constituía um problema insolúvel de um Norte onde a queda da borracha falira completamente a economia, fazendo fracassar toda iniciativa particular.
Chegamos a uma terra onde tudo estava por fazer, em que um Governo mal informado a nosso respeito tomou medidas drásticas contra nós, julgando-nos elementos indesejáveis e perniciosos. A nossa situação era de se lastimar. Aparece um chefe, baiano e “pau rodado” como nós, engenheiro, homem inteligente, e assume o patrocínio de nossa causa: Dr. José Morbeck. Eis o nosso líder. Era o que nos faltava, tínhamos comando, o que é imprescindível em qualquer tipo de luta.

Antônio Paulo da Costa Bilégo

 

Dados pessoais:

Antônio Paulo da Costa Bilégo, filho de Pedro Paulo de Medeiros e Celerinda Costa Medeiro, nascido no dia 9 de junho de 1909, em São Raimundo das Mangabeiras, Estado do Maranhão. Vindo para Conceição do Araguaia – PA, com apenas sete anos de idade. Fez o curso primário com as irmãs Dominicanas, naquela cidade do Sul do Pará. Não podendo continuar a estudar, por falta de meios, vem para o Estado de Mato Grosso em 1922, contando quatorze anos incompletos. Foi empregado de balcão, garimpeiro, açougueiro, tropeiro, comerciante, boiadeiro e fazendeiro. Exerceu os cargos de Prefeito de Araguaiana, sendo responsável pela transferência de sede do município para Barra do Garças em 15 de Setembro de 1948, tornando-se o seu Primeiro Prefeito. Foi encarregado da construção e ampliação das primeiras estradas do município e vereador por duas legislaturas. Chefe da base da F.B.C. Fundação Brasil Central, em Aragarças, Delegado de Polícia, respondendo pela Delegacia Regional, Inspetor de Exatorias. Prefeito de Aripuanã de 1979 a 1983. Maçom Emérito da Loja Maçônica Acácia Cuiabana, é fundador da Loja Maçônica Acácia do Araguaia. Comendador da Ordem do Mérito Legislativo Mato-grossense, poeta e declamador. Deixou sete filhos, 28 netos e 43 Bisnetos.

Parte dos capítulos do mencionado livro referentes à revolução: “Morbeck versus Carvalhinho”. Conflito ocorrido em Mato Grosso na década de 20

 

Como Começaram as Lutas do Garças
Pg.: 121 à 123

Quando chegamos à Mato Grosso já encontramos uma cisão política, entre Dr. José Morbeck, chefe garimpeiro, e o Governo do Estado. Devido a condição de “pau rodado”, como eram tratados os forasteiros pelos filhos da terra, aliou-se a nós demonstrando a sua capacidade de liderança. Daí a tornar-se a figura central de todos os acontecimentos, que iriam travar-se na zona Leste do Estado de Mato Grosso, Morbeck era baiano, engenheiro, casado com dona Arlinda Pessoa Morbeck, senhora de raras virtudes, oriunda de uma das tradicionais famílias do Nordeste e dona de uma cultura invulgar: poetisa, escritora, dramaturga e, além de tudo, mulher exemplar.

Morbeck era o tipo acabado de Nordestino, embora fosse baiano do Sul, baixo, moreno, queixo fino, maçã do rosto saliente, pouco cabelo, enfim, um tipo nem feio nem bonito, ao contrário dos irmãos que eram todos bem claros. Era de um escrúpulo a toda prova; vestia-se modestamente e não tinha vaidade. Era justiceiro, vez por outra fugindo a essa virtude dado a seu gênio impulsivo. Era de um destemor impressionante, detestava mentiras e não era dado a bajulações. Quando estava calmo, falava pouco; não era bom orador, contrariando assim a sua origem de baiano. Embora fosse tido como mau, era incapaz de mandar matar a quem quer que fosse; mesmo o seu pior inimigo. Todos os prisioneiros feitos em combate eram poupados.

Morbeck viera para Mato Grosso a convite do doutor Deocleciano do Canto Menezes, como homem de bem que era. Deocleciano, que também era baiano, apresentou-o aos chefes políticos em Cuiabá, como chefe da baianada, que já formava um grande contingente na zona Leste do estado. Baianos, eram todos os elementos que viessem do Norte, inclusive os Maranhenses.

Chegando a Registro do Araguaia sua mulher dedicou-se ao ensino, educando a juventude, especialmente as moças a quem procurava ministrar o seus belos conhecimentos.

Morbeck, como premio de seu trabalho, é convidado a exercer o cargo de diretor de terra, cargo técnico ao qual faz jus pelo seu diploma de engenheiro. Nessa ocasião surge a celebre concessão do rio das Garças.

Uma companhia inglesa propõe ao Governo de Mato Grosso que lhe fosse cedida uma área, mediante o pagamento de alguns milhares de contos de réis, para a exploração de garimpo, compreendida entre a mais alta cabeceira do Rio Garças e a sua foz, numa faixa de seis quilômetros em cada margem, respeitando direitos anteriores adquiridos. O assunto está tramitando pelas repartições competentes, já está tudo apalavrado com a bancada do governo federal, com exceção de um senador, que deixo de citar o nome, por não ter certeza. A verdade era que as coisas corriam sem que ninguém ousasse propor o cambalacho ao diretor de terras. Mesmo, ninguém ia supor que um pobre engenheiro e demais baiano, fosse ter o peito de se pronunciar contra a decisão dos donos da terra. Morbeck, ciente de tudo, se finge de morto e fica bem vivo, esperando que o processo chegue em suas mãos.

Na data aprazada recebe o calhamaço da mão de sua secretária. Lê com atenção, para, no fim dar o despacho arrasador, contra toda a expectativa. Lavra o seu pedido de demissão, põe na gaveta, tranca e entrega a chave a sua secretária. Vem para Coxipó, pega o seu burro, único meio de transporte entre a Capital e o Leste do estado, e sai sem despedir de ninguém. Chegando em Registro, dá conta aos seus amigos. Em seguida vai ao Rio de Janeiro, dar uma satisfação a seus amigos de alto escalão político, inclusive o general Rondon, que tinha por Morbeck certa admiração e depois dessa resolução, o grande Rondon, que amava Mato Grosso acima de tudo, passa a tê-lo na mais alta consideração. Morbeck, com essa sua atitude, torna-se nacionalmente conhecido, chegando a sensibilizar a pena de Chateaubriand que escreve um artigo sobre o mesmo, colocando-o no nível dos grandes homens da época. Chegou a tal ponto o prestigio de Morbeck que da uma feita, o autor dessas notas o assistiu mostrar uma carta na casa de um seu tio a ele dirigida por um lorde do almirantado britânico, pedindo-lhe permissão para que fulano de tal, o enviado seu, pudesse comprar diamantes na região do Garças. Morbeck, com aquele seu jeito simples comenta com meu tio: “Veja Major como são as coisas, eu que não fui dono de nada além da minha fazenda, a mim me tornam como senhor feudal daquela região”.

 

Dado a esses acontecimentos começa haver uma certa “ciumada” e, consequentemente, uma cisão de amizade entre Morbeck e o Governo do Estado; enquanto que na alta esfera seu prestígio ia cada dia crescendo. Enfim, é o homem em ascensão.
Para o Governo do Estado de Mato Grosso, isso não cheirava bem, pois vê que está se criando no Leste do seu estado, uma força, e já com certa expressão de hostilidade ao seu Governo. Os Cuiabanos que vinham ao garimpo, com qualquer fim, mesmo comercial mostravam-se arredios e desconfiados.
Achavam que nós, Nortistas e Nordestinos, éramos gentes de má “catadura”, quando na verdade era o contrário. Queríamos apenas um lugar ao sol, vínhamos de uma terra onde a economia falira. Outros que vinham diretamente de seu estados fugiam ao superpovoamento, onde o dinheiro residia na mão de uma minoria, incluindo-se entre esses os baianos, que também sofriam do mesmo mal.

Chegávamos em uma terra onde tudo estava por fazer, onde o diamante era abundante, onde o garimpo embora fosse um jogo, nos prometia dias melhores. Então nós, como brasileiros, também nos julgávamos com os mesmos direitos. Éramos entes humanos, tínhamos família e finalmente, éramos filhos de Deus. Fomos nos apossando da terra que, por sorte, eram devolutas. Os poucos fazendeiros que ali residiam adquiriam pequenas glebas para garantirem as suas posses, mas se diziam donos do mundo. Requeriam reduzidos números de hectares, dentro de limites onde cabia dez vezes a área legalizada, e começavam impor direitos que não tinham. Nós não éramos bobos, não íamos, portanto na conversa.

Ia nascendo daí esse antagonismo de todas as forças oficiais e econômicas contra nós. Fomos ficando então, um grupo sem leis como se podia dizer lei do garimpo, onde muitas vezes imperava a lei dos mais fortes.

Havia, entretanto, o respeito pelo direito adquirido, se descobria-se um garimpo novo cada qual marcava sua frente de serviço e passava dali em diante, a construir uma propriedade inviolável. Mas não era possível que ficássemos assim a vida toda; tínhamos de construir uma sociedade onde pudéssemos viver como homens, e era justamente o que não conseguíamos fazer. O governo não nos hostilizava diretamente, mas também não nos dava a mínima importância. Parece que esperavam que os garimpos se esgotassem, e que dentro de pequeno prazo déssemos o fora.

A compreensão de todos é que o garimpeiro é nômade. Os nossos acampamentos não mereciam a menor confiança, os nossos ranchos eram feitos de folhas de Babaçu ou Buriti. As nossas camas eram de varas. A maioria dormia em redes, apesar do frio que nos castigava nos meses de maio a setembro.

Revolução do Dr. Morbeck
Pg. 125/126/132

Enquanto tudo isso ocorria, os ânimos iam se acirrando. Morbeck volta de Rio e vem aos garimpos ver os amigos e dar conta de sua missão. O povo lhe aplaude e presta-lhe a maior homenagem já vista. Então, por sugestão de elementos mais esclarecidos, é entregue a Morbeck a chefia suprema dos garimpos, da qual já era chefe sem pasta. Então, para oficiar essa nomeação, é criada a liga garimpeira, entidade que teria três chefes: Morbeck, Candinho e Carvalhinho, homens esclarecidos que podiam defender os nossos direitos.
Cândido Soares Filho, o Major Candinho, era baiano da lavras de Lençóis. Homem de estatura abaixo da média, moreno, míope, de traços firmes, confirmando assim a sua origem de fina estirpe. Segundo dizem os seus conterrâneos era afeito à luta armada, tendo tomado parte nas forças de Horácio de Matos, nas lutas contra o governo de Bahia, de cuja história se ufanava.

Coronel Carvalhinho: Manoel Balbino de Carvalho. Pernambucano de nascimento, mas baiano de criação, era oriundo dos Balbinos de Barreiras, na Bahia. Homem de estatura média, moreno claro, traços firmes, bons conhecimentos, não falava muito, não era intelectual, as era bastante viajado. Tinha ótimos costumes, falava pouco, ria com muita discrição. Não contava a sua história verdadeira. Segundo os seus conterrâneos, estava eivado de algumas passagens que fazia questão de não serem lembradas. Os seus conterrâneos da Bahia diziam que lá o seu apelido era Nezinho Balbino. Apelido que lá deixou a sepultar, onde deixava igualmente sepultado um seu sócio por questões familiares, tendo se retirado do seu estado logo após a tragédia (matou o amante de sua esposa. Citado por Milton Pessoa Morbeck Filho). Passados esses acontecimentos, reúne alguns recursos e vem de muda pra Goiás, onde se casou e viveu até a sua vinda para Mato Grosso.
Criada a liga e feito o seu estatuto, ficaria estabelecido que em cada novo garimpo que fosse surgindo seria indicado um chefe, que, segundo critério geral, chamar-se-ia a segunda pessoa do doutor Morbeck.

Há um conceito antigo que diz: o homem não pode viver sem chefes. Disso nós temos provas evidentes, pois até os silvícolas escolhem os seus lideres. E como o governo do estado que tínhamos invadido, não queria aceitar-nos, aceitamos esta opção por falta de uma melhor. Dizem que baiano tendo dois, um é chefe, mas não é só baiano, todos os povos se ressentem da falta de liderança. A certeza de termos uma pessoa que fale por nós, nos dá tranquilidade para trabalhar; caso contrário a sociedade vira Balbúrdia. A certeza de termos um chefe que fale por nós, na alta roda política no Rio de Janeiro, já que Cuiabá não queria nada com garimpeiros.
Por isso, sem que percebêssemos e muito menos desejássemos, foi-se criando dentro do estado de Mato Grosso, na zona Leste, uma nova força, espécie de estado independente. Tal estado de coisas foi fazendo o governo ficar de orelha em pé. Morbeck, crescendo no cenário político federal e fortificando-se em homens e armas na região dos garimpos. Com a fama do garimpo de Garças, começa a se deslocar da Bahia, onde as lavras já estavam esgotadas, grande número de garimpeiros, quase todos remanescentes das forças de Horácio de Matos, homens que tanto sabiam manobrar uma bateia quanto um fuzil. Os adversários políticos que se digladiaram nas lavras de Lençóis aqui se tornaram amigos, porque nas Lavras eram adversários políticos, mas aqui em Mato Grosso todos eram baianos e amigos. Se uniram para serem respeitados.

Com a retirada do capitão, as autoridades de Cuiabá ficaram indignadas com os garimpeiros e como conseqüência vai se agravando mais a situação, já tão delicada. Morbeck chega do Rio e vem a Cassununga para tomar conhecimento de tais acontecimentos. Não apóia tal feito, mas também não desaprova. Tal é a sua prevenção, com o governo que fora seu amigo e agora o desprestigia, a ponto de odiá-lo. Fica resolvido que se passe um telegrama à Cuiabá, lamentando tal acontecimento, mas que não concorda absolutamente com a cobrança de impostos na zona dos garimpos, alegando que o garimpeiro ainda é um nômade. As suas construções são ranchos de palha e a sua vida é completamente sem garantia e que o governo deve primeiro abrir escolas para seus filhos e não procurar acumulá-los de impostos. Se acha que o garimpeiro é indesejável, então apele para as forças, que ele, Morbeck, estará ao lado desses para defendê-los. Diante de tal ameaça, o governo resolve manter a sua decisão a qualquer preço. Não é possível ficar desmoralizado, mas amigos lhe advertem que Morbeck é uma força. Além do elemento jagunço, conta com políticos influentes no Rio, inclusive o General Randon que olha Morbeck por outro ângulo, considerando-o um defensor de oprimidos e, por isso, não vê razão para que ninguém o hostilize e nem a nenhum forasteiro.

A sua opinião é que temos uma vasta extensão territorial para povoar, e considera a maioria dos garimpeiros procedente do Nordeste. Elementos formidáveis para qualquer tipo de luta. Os conhece por experiência própria, quando das suas expedições para a Amazônia, implantando linhas telegráficas. E assim é, que depois de muitas “dermarches” o governo resolve convidá-lo para uma mesa redonda, no Rio, cujo objetivo é harmonizar as forças, pois é impossível conceber dois governos dentro do mesmo estado: um em Cuiabá e outro no garimpo.

Volta a Revolução de Dr. Morbeck
pg.: 144 à 163
No outro dia , Carvalhinho é consultado se aceita a chefia do Garças. Vacila, mas demonstra interesse em aceitar. É a vaidade explorada. É levado a presença do governador, que propõe a sua nomeação para delegado regional para toda a zona do Garças, com sede em Santa Rita do Araguaia.
Envaidecido com o alto cargo, não prevê as consequências. Fica combinado que passará por Cuiabá, onde receberá um título de nomeação e um destacamento, que, embora pequeno, apenas oficializa a sua autoridade, pois tem muitos amigos, homens acostumados com luta, dos quais, caso precise, lançará mão. E assim é que, chegando em Santa Rita, toma posse. Faz as comunicações, aumenta o contingente com civis e entrega o comando ao Sargento José Rodrigues, aguardando os acontecimentos.
Morbeck, que se encontra no Garças, onde está fazendo uma peregrinação pelo garimpo, a fim de esclarecer aos amigos a atitude que tomou, deixando de comparecer a mesa redonda para não ser grosseiro com os amigos do Rio, está resolvido a não recuar um palmo e nem modificar os seus propósitos. Isto agrada muito a todos, especialmente no que se refere ao não pagamento de impostos, o que ninguém faz por gosto e sim por obrigação.

Corre em Santa Rita, à boca pequena, que Morbeck será preso, logo que ali chegar. Outros adiantam que será assassinado.

Dona Arlinda, mulher de Morbeck, é inteirada, por intermédio de amigos, da ameaça de prisão do marido. Reúne em sua casa amigos de confiança e resolve mandar avisá-lo. Pelo prazo que deu deverá estar chegando. Consulta-se quem poderá ir. Aparece um voluntário, Febrônio Rodrigues que, embora hemiplégico, é de uma coragem a toda prova e possui a grande virtude de ser amigo leal e dedicado. À noite mesmo, manda no pasto pegar o seu burro, e alta madrugada previne a sua mulher que vai a uma viagem de negócios e volta dali a cinco dias.
Parte a largo trote rumo aos garimpos. A meio caminho encontra Morbeck, que viaja despreocupadamente, em companhia de apenas um camarada. Entrega-lhe a mensagem da mulher e aguarda o efeito. Morbeck lê e comenta: Carvalhinho com essa sua resolução apenas precipitou os acontecimentos. Responde a mensagem da mulher. Despacha o portador de volta e retorna a Cassununga. Foi surpresa para todos esse seu retorno inesperado. Reunindo os amigos lhe põe a par da situação. No dia seguinte, bem cedo começa o aliciamento do pessoal dizendo-lhes que vai haver uma eleição em Santa Rita e todos vão votar, para ver quem deve ficar na chefia do Garças, se ele ou o coronel Carvalhinho.

De propósito, deixa transparecer que esta eleição pode dar confusão e até tiro. Por isso todos tem que ir bem armados.

É encarregado da organização do batalhão, o coronel Candinho, Leonardo Córtes, Quincas Laborão e outros. Aí já está praticamente pacificada a rixa entre baianos e maranhenses. Aqueles que tinham feito aquelas maldades estavam execrados pelos próprios conterrâneos. Agora o bloco está unido. Somos todos garimpeiros e precisamos prestigiar nosso chefe, aquele que tanto tem se sacrificado por nós. Não podemos deixá-lo, não somos traidores como Carvalhinho. Os discursos são inflamados. Já começa a sair o primeiro contingente. A tarde já saíram cento e tantos eleitores que, embora sem títulos e sem canetas, leva cada um, uma espingarda. Há um problema muito sério, a falta de munição que é superada pela quantidade de homens.

À noite saem os chefes; Candinho e Morbeck vão “pousar” com a tropa. Pela madrugada partem todos, guiados pelo próprio Morbeck, que grande conhecedor da região evita as estradas concorridas, viajando quase sempre à noite, o que lhes valeu o apelido de morcegos. Chegados ao Córrego Boiadeiro, altas horas da noite, nas proximidades de Santa Rita, Morbeck manda avisar a sua mulher e esta vem com os filhos para onde ele está. Avisando antes os amigos íntimos para que se retirem, no que não há dificuldade, pois estão já de sobreaviso.
Tudo isso é feito na calada da noite. A cidade é pequena. Nada perturba o seu silêncio a não ser algum cão vagabundo.

Começa o cerco à casa de Carvalhinho, sendo primeiro cercado todo o perímetro da cidade. Aguarda-se com calma o clarear do dia. Ao raiar da aurora, aparece na calçada da loja de Carvalhinho o senhor Guirra Maciel, aquele mesmo que escapara em Coxipó, do tiroteio em que morrera Reginaldo. Ainda de roupa de dormir e escova de dente, é reconhecido pelo vigia que está no quintal da casa próxima, que transmite aos outros a sua identidade. Dentro do grupo tem alguém que se lembrou e comentou: “Tu escapou da morte em Cuiabá, mas aqui tu não vais contar vantagem”. E, fazendo portaria, esfacela-lhe o crânio com uma bala de fuzil.
Começa o tiroteio que durou três dias. Carvalhinho, vendo a situação insustentável resolve abandonar a praça de guerra.

Depois de dar uma carga cerrada, sai pelos fundos e cai no rio, atravessando o Araguaia a nado, que felizmente naquele local ainda é pequeno. O grupo de Carvalhinho passa daí em diante a ser denominado Cai-Nágua. Estão batizadas as duas facções que vão ensanguentar o Leste de Mato Grosso: Morcegos, versus Cai-Nágua.
Durante os três dias de cerco, Carvalhinho é acossado pela jagunçada que, a fim de poupar munição, completam com a guerra de nervos. Gritam, relincham como jumento, dirigem as mais ofensivas frases ao coronel Carvalhinho.
Tem um preto de nome Eugênio que grita de uma casa próxima quando o tiroteio baixa de intensidade: “Ei coronel, você não tem homem valente? Se tu quiser tirar raça de homem valente, manda tua mulher vir dormir comigo”. E assim eram os demais.
Termina o tiroteio às três horas da tarde. Entre os homens de Morbeck verificam-se apenas três baixas, sendo uma muito sentida a do pernambucano Nascimento, ex-sargento do Exército, homem valente e amigo leal de Morbeck. Já na hora que tudo está terminado, alguns tiros esparsos denunciam os fugitivos, que procuram escapar pelo lado de Goiás.

Não sei quantos morreram dos homens de Carvalhinho. Sei apenas que dias depois boiavam alguns cadáveres Araguaia abaixo. Não foram tantos como os povos propalava. Deve ter sido mais ou menos o mesmo número de perdas de Morbeck, mesmo porque o grupo de Carvalhinho era bem menor, e a sua posição era de defensiva. Deve-se mais as suas baixas à fuga em plena luz do dia, o que oferecia alvo certeiro aos Morbequinos.


Terminada a refrega, Morbeck autoriza fechar a casa comercial de seu inimigo, e vedar as portas com tiras de papel. Morbeck era, por feitio e por principio, um homem honesto. Não consentia que se matasse uma rês na fazenda de um inimigo seu. Certa feita, ao passar por uma fazenda de seu inimigo, um de seus companheiros tirou uma laranja. Ele então lhe pediu que lhe desse a fruta, e atirou-a dentro do quintal do fazendeiro, dizendo: “Esse homem é meu inimigo, jamais consentirei que alguém carregue qualquer coisa de sua propriedade”.

Apesar de sua recomendação, à noite o seu amigo e compadre major Candinho manda que a jagunçada viole a casa e se aposse das mercadorias. Pela manhã, quando recebe a notícia, fica desolado: não tinha mais jeito, a casa comercial do coronel Carvalhinho tinha sido dividida por trezentos e tantos sócios. Até pessoas que não tomaram parte no combate, carregaram tropa de burro com a mercadoria. A jagunçada não queria coisa pesada, o que lhes interessava era calçados, chapéu, roupas e munição. Morbeck ao saber do ocorrido, manda chamar o compadre Candinho a sua presença e lhe diz: “Você me arrasou. Se sei que tal ia acontecer, preferia ter sido morto por Carvalhinho e os seus asseclas”.

Candinho, não podendo alegar ignorância, apenas argumenta: “Qual, compadre, jagunço gosta é disso. Sem “sebassa”, não teremos homens para enfrentar as futuras lutas que travaremos com o governo. Portanto nada mais podemos fazer; não vamos tirar botina dos pés e nem roupa do corpo de ninguém”.
Carvalhinho, com financiamento do governo, vai à Bahia buscar elementos de luta, recrutados entre os remanescentes da lutas de Horácio de Matos e outros chefes de jagunços das lavras de Lençóis. Traz, entre outros, Domingos Laborão, figura já bastante conhecida.
Enquanto Carvalhinho está para a Bahia, acontece a passagem da Coluna Prestes para o Norte. Prestes, informado até com certo exagero do prestígio de Morbeck e julgando-o uma potência, ao aproximar-se do Sudoeste de Goiás, manda dois emissários em Santa Rita para parlamentar com aquele chefe, que no caso de não lhe dar apoio, firmasse um pacto de não agressão, tendo Morbeck aceitado a segunda condição.

Prestes é considerado um dos maiores estrategistas do nosso Exército, mas o coronel Bertoldo Klinger o faz entrar em um cinturão de ferro, estabelecido desde Três Lagoas em Mato Grosso até o rio Paranaíba, fechando em Rio Verde, no Sudoeste goiano.
Enquanto Prestes combate as forças de Klinger, ainda em Mato Grosso, Morbeck é chamado por amigos ao Rio de Janeiro, para organizar um batalhão patriota a fim de combater as forças revoltosas. Embora não fosse essa a sua intenção, pois já tinha um pacto de não agressão, Morbeck aceita o convite e vai ao Rio buscar armas, mandando que os seus amigos reúnam os homens e partam para Barra do Garças, onde Antônio Cristino e Calisto Côrtes, seu irmão, organizarão os elementos de lá. E assim é que Morbeck em poucos dias despachará de São Paulo, armas, roupas e etc., para uma força de mais ou menos trezentos homens que deverão partir de Barra do Garças para Rio Bonito, hoje Caiapônia, Goiás, de onde um dos seus homens de confiança deverá acompanhar o dito material bélico.

Morbeck, ciente de volta de Carvalhinho, que já se encontra em Cuiabá com homens treinados na luta e mais um contingente da polícia do estado, resolve ir ao Rio, onde tem promessas de amigos valiosos do Exército, conseguir através destes, armas para a luta, pois as que possuímos são obsoletas. Deixando Ondino, Leandro, os irmãos Pacheco, Silvano Marajá, José Caboclo, Domingos Bailão, Raimundo Lima, os irmãos Castelano e outros, todos estes chefes de pelotão, para evitar que Carvalhinho se aposse do Garças.

Carvalhinho marcha para Poxoréo onde tem o objetivo de aliciar, entre garimpeiros, elementos para a luta. Uns vem espontaneamente, outros são pegos meio a muque diante de ameaças de que, se não vierem para o Garças pegar no pau furado irão para as usinas: terror do povo naquela época. Engrossando as forças de Carvalhinho, estão aqueles bandidos da chacina do garimpo das Pombas, dos quais já falei, que ficaram em Cuiabá e Poxoréu, aguardando a oportunidade de tirar uma desforra.

Candinho organiza as forças e entrega o comando a Ondino que, julgando a posição pouco estratégica de Cassununga, coloca um piquete na fazenda do Vilela, passagem forçada das tropas do governo. Tudo isso tem o efeito mas moral do que guerreiro: se vê pela qualidade das armas e a deficiência de munição, e a impossibilidade de resistir, visto que uma força do governo, embora fraca, tem o seu apoio oficial. Aguarda-se para todo o dia a chegada de Morbeck.
As forças do governo marcham de Poxoréo com destino à Santa Rita, onde deverá chegar Carvalhinho para assumir seu posto de Delegado Regional, do qual Morbeck o destronara. Comanda a referida tropa, o Engenheiro Civil, Doutor Miguel Carmo de Oliveira Melo, coronel Carvalhinho, capitão Mesa, tenente Villares, e Robertinho e alguns oficiais menores.

As forças do governo abrem em pinça, enquanto Ondino passa com os seus, por cima dos cartuchos ainda fumegantes. Quando Emiliano o vê diz: “Você ressuscitou, nunca julguei que escapasse com vida”. Ondino sem perder a calma responde: “Se eu fosse um covarde teria morrido, mas quando eu nasci e perguntaram o que era a criança, a parteira disse que era homem e eu não podia deixa – lá de mentirosa”. E foi logo tratando de procurar o que comer.

Ondino era um homem controlado. Nunca houve luta, raiva ou medo, que tirasse o seu apetite. Se não tinha o que comer, também não reclamava. De uma feita, contam que ele estava fazendo o reconhecimento em companhia de dois companheiros, quando percebe próximo, um grupo que tentava uma retaguarda de seu pessoal; sem ser percebido ordena que se colem ao chão e espera a coisa chegar no ponto, dando ordem aos seus: não atirem antes de mim. Quando o grupo se aproxima, ele atira no da frente. O sujeito cambaleia, larga a arma e cai. Ele com aquele seu jeito de ironia grita para a turma: “Desculpa companheiro, não foi por gosto”.
Chegados a Santa Rita, espera-se que o inimigo demore, enquanto se assenhoram de Lajeado e povoados vizinhos, mas compreendendo que a fuga não dependia da falta de valor, e sim de munição. A força do governo marcha em ritmo acelerado no encalço dos nossos, entrando em Santa Rita no dia seguinte, em pleno meio dia.

No Córrego Boiadeiro tem um piquete que recebe o inimigo a bala, mas todos já estão cientes de qualquer resistência é inútil. Então, Antônio Cristino procura coordenar o seu pessoal para se recolher a Barra do Garças, seu quartel general. Pessoalmente comanda o grupo ao qual, juntos, Ondino e Silvano, cobrem a sua retirada oferecendo resistência até a saída do derradeiro homem.

Um dia, sem que a maioria esperasse, chega Morbeck trazendo o tão desejado armamento, que fica em Rio Bonito na casa de amigos seus, com rótulo de ferragens, armarinhos e roupas feitas, despachado para um comerciante que não existia na região. Naquele tempo a fiscalização não era exigente.
Logo pela manhã despacha dez homens sob o comando de Chico Dourado, para “combunhar” a mercadoria. Como a tropa de burros, contratada em Caiapônia, fosse insuficiente, manda outra, dali mais um pouco para que não haja demora, porque o tempo urge. Em um tempo recorde, chega tudo a contento. Corre o boato que Morbeck recebera trezentos fuzis e muita munição. Notícia, que de propósito ela deixa correr, quando na realidade vieram apenas cento e poucos, com bastante munição.

Naquele combate de Prestes com o coronel Klinger de que atrás falei, na fazenda Zeca Lopes, foi desprezada, como obsoleta, uma metralhadora. Fazendeiros da região recolheram a dita arma e como se tratava de gente amiga de Morbeck, lhe foi dada de presente. Não tinha nenhum valor bélico aquele trambolho, mas produzia um efeito moral. Embora funcionasse bem, era totalmente descalibrada. Mesmo assim, para as forças governistas era uma prova do que se dizia que Morbeck gozava de prestigio na área militar.
A prova é que até arma automática estava conseguindo.

Ignoravam eles a origem de temido engenho de guerra. Encontrava-se em Barra do Garças, um alemão, Carl Stangler, ex combatente da primeira grande guerra, e, como fosse amigo do Calisto Côrtes foi por ele convidado para artilheiro, porque entre os nossos companheiros não tinha quem soubesse manobrar aquela peça. Carl verifica que a arma é velha, mas ciente da finalidade para qual seria aplicada dá-lhe uma limpeza e faz uma demonstração que a todos agrada. Então estão todos radiantes de alegria, só mesmo do doutor poderia conseguir um troço daquele. O “trem” dá trezentos tiros num minuto. Só que não atinge o alvo, mas para quem ignora é um sucesso.

Com todo o material em Barra do Garças, Morbeck manda chamar os voluntários e, depois de todos em forma, em número de trezentos e cinqüenta, faz um discurso e coloca-lhes a par da situação, dizendo-lhes: “Nada tenho a dar a vocês. Não faço promessas que não as possa cumprir. Àqueles que forem arrimo de família e acharem que não podem ir, recebam meu abraço, que já cumpriram sua obrigação. Aos que forem, só uma coisa posso lhes dar: temos condição de tomar o Garças para trabalhar. Se perdermos a revolução, hipótese na qual não creio, irei com vocês para o Norte”. Todos em uníssono dizem: “Iremos, não podemos deixar sem chumbo. Temos que vingar o sangue dos nossos companheiros, que lá tombaram. Só queremos o Garças para trabalhar”.

No outro dia partem para a fazenda Patagônia, de propriedade de Morbeck. Lá se encontra uma boiada fechada. Matam gado suficiente para uma matula até o teatro da guerra, que agora não será mais o Garças e sim a zona do Araguaia. As forças do governo, sediadas em Santa Rita, estão na posição de força de ocupação e como tal não se preocupam com quase nada, a não ser uma vigilância de rotina. A maioria passa o dia jogando cartas ou dominó, não acreditam que Morbeck volte.

Eis que um belo dia chega a notícia, de que as forças Morbequinas estão próximas de Santa Rita e que o objetivo é atacar a cidade. Tudo muda de ritmo: a cidade toma aspecto de praça de guerra. O moral da tropa é ótimo. Todos dizem a mesma coisa: “Já corremos atrás deles desde o morro da Arnica, não vão agüentar meia hora de fogo”. Cedo partem para o lugar indicado, onde está acampada a força dos morcegos. Os primeiros encontros são como eles previam. A tropa, sem moral, não agüenta meia hora de tiroteio e começa a fugir, malgrado o esforço dos seus comandantes. À noite, Ondino, que ainda não entrara em ação, reúne todos para uma defensiva geral e, junto aos colegas de comando, estabelece o segundo critério: “Aquele que correr será baleado pelas costas. Temos que mostrar o nosso valor, não viemos aqui enganados. Estamos conscientes da nossa missão, portanto temos que desempenhá-la”.
Forma uma vanguarda com o que há de melhor. Confia os postos mais perigosos e Leonardo, Silvano, Zuza, Celso, Reis e outros, formando, com os mais fracos sob o seu comando, a vanguarda que decidiria a sorte da peleja. Cada chefe de pelotão tem a sua missão, tudo cronometrado e fiscalizado por homens de comando para que melhor coloquem os homens em posição de combate, sob a chefia de Gumercindo Morbeck, Raimundo Lima, os irmãos Martins e mais outros homens de confiança para que tragam todos em boa ordem.

Aguarda-se o inimigo que não se faz esperar. Aparecem como quem vem para um passeio, todos de roupa limpa, cavalhada bem “ajaezada”, armas novas, lenços vermelhos ao pescoço, confiantes de que os nossos não lhes ofereçam resistência. Ondino dá ordem: “Não atirem antes de mim, aguardem a oportunidade”. E, quando a força se aproxima levanta-se e dispara seu mosquetão. Serra-se a fuzilaria. A força do governo, acostumada a escaramuças, os nossos, partem para a ignorância. Notando, entretanto, a intensidade do tiroteio, e já contando algumas baixas entre os seus, torna-se mais precavida. E quando preparam a segunda investida, eis que o alemão Calr faz funcionar a sua máquina, aquela quer Prestes deixara por imprestável e que produz o efeito desejado. A turma fica atônita quando vê que Morbeck tem arma automática, o que produz também nos nossos uma reação estimulante, pois nunca tinham visto nenhum barulho tão bonito. O moral da tropa já é outro. Aqueles que ainda estavam meio tímidos, quebram o chapéu na testa e convidam Ondino para avançar, no que são advertidos: “Não há necessidade de precipitação, vamos aguardar que o inimigo vire as costas; por hora ainda estão de frente”.

Durante o dia a fuzilaria é intensa, à noite arrefece um pouco. No terceiro dia verifica-se que as baixas entre os nossos são mínimas. Ondino faz uma ligação com todos os comandantes e autoriza avançar. O inimigo, meio desmoralizado, confessa que a coisa não está tão fácil como de início parecia. Ao notar a impetuosidade do ataque, foge em direção ao seu quartel general, deixando vários de seus companheiros estendidos no chão. Entre estes, um dos cabos de guerra que Carvalhinho trouxera da Bahia, o celebre Tomba-Morro, cujo nome certo é Manoel Messias.
Chegados a Santa Rita, a maioria a pé, confessam que a gente de Morbeck está bem armada e em condições de oferecer resistência a qualquer força regular. E não era mentira. O que os militares notaram, pela organização do combate, é que tinha gente entendida no assunto. Corria boato de que Morbeck tinha trazido oficiais do Exército para comandar a sua tropa.

Embora isso não fosse verdade, quase todos os comandantes de grupo tinham servido em forças regulares: Ondino e Leonardo, ex cabos de Exércitos; Silvano Marajá, ex-combatente dos Contestados, no Paraná, onde fizera parte de duas expedições; Reis, ex-sargento da política de Minas Gerais; Gumercino Morbeck, ex-oficial da polícia. Os demais eram homens com prática de lutas em revoluções sertanejas.

Os tiroteios não param, apenas os combates são menos intensos limitando-se quase sempre a escaramuças. São estes os piores, onde se verificam mais baixas. Ninguém sabe onde vai encontrar o inimigo. É sempre um surpresa que todos aguardam, e a surpresa é sempre mais desfavorável a um lado.

Morbeck não desanima. É instado todo o dia a tomar logo Santa Rita, no que pondera: “Não podemos errar, é preciso que o inimigo se convença cada dia do nosso valor”. Se no dia que a força do governo recuou, Morbeck tivesse prosseguido em sua perseguição, não tenho a menor dúvida que Santa Rita teria sido evacuada, mas poderia acontecer de ser retomada pelas forças do governo que, embora fracas, tinham mais condições de se rearmar do que as nossas. Voltariam com mais impetuosidade. Mas Ondino, com sua matreirisse, não queria perder a sua posição de atacante. É melhor atacar do que ser atacado, noventa por cento dos que atacam levam vantagem. Defender uma praça de guerra é algo problemático.

Os combates agora são menos frequentes. Embora o inimigo quando ataque ainda venha com o mesmo ímpeto, o moral da nossa tropa é ótimo. As baixas com a intensidade dos combates são mínimas. Apenas a alimentação é deficiente, consta de carne, mandioca e, às vezes, farinha de mandioca, mesmo assim muito rara. Quando tem farinha usa-se paçoca, que é socada nos monjolos das fazendas abandonadas. O churrasco é o forte, às vezes não tem sal, mas apesar de tudo existe a palavra consoladora: “Quem quer passar bem, revolução não é brinquedo de menina fêmea, é pra macho”remanchedo”, é baião pra doido”.

Quanto ao socorro aos feridos, apenas tintura de iodo e sumo de mastruço são os únicos medicamentos, e apesar de tudo houve curas admiráveis. Cito um caso de Joaquim Lopes Pedra, que recebeu um tiro de fuzil no peito e saiu nas costas, e com quinze dias estava em condição de entrar novamente em combate, a única medicação foi a acima citada. Dizem os médicos que sumo de mastruço é apenas vermífugo, não sei não, posso ir contra a ciência, mas afirmo que no sertão tem um poder cicatrizante admirável.

Começa a se tornar monótona a vida. as forças estão demorando atacar, o nosso pessoal já não tem mais roupa. De coberta, alguns tem algum trapo, a maioria está descalça. Chove torrencialmente. Foi talvez o período mais chuvoso deste século, dezembro de 1925 a janeiro de 1926.

Conta-se que o paraibano conhecido por Camilo, ao encontrar o morto, foi tirar-lhe as botinas. Quando um outro se antecipou, Camilo pôs a bala no mosquetão e intimou-o a abandonar a idéia de deixá-lo descalço.

Entre os combates mais renhidos ficou conhecido o de Ribeirão Claro, Córrego Rico, Olaria e o do Caminhão. Não deixo de lembrar um retaguarda, na qual se misturaram elementos dos dois lados. Foi um combate terrível, quase no corpo a corpo, onde “Lapixim” vendo o inimigo já esmorecido, saltou-lhe em cima e o matou a punhal. Foi um tiroteio rápido. Perdemos quatro homens, dentre eles um dos mais valentes, de nome João Sodré. Termina com a nossa vitória.

Morbeck tinha feito um pacto de paz com o doutor Mário Correia, presidente já eleito de Mato Grosso, no qual ficara acertado que, em tomando posse no governo, Morbeck retiraria seus homens e poria o armamento a disposição do governo. E assim aconteceu.
No dia 20 de janeiro de 1926, o grande mato-grossense tomava posse no governo do seu estado, e Morbeck recuaria para a fazenda do Amadeu. Mas, como o inimigo atacasse com todas as forças, foi obrigado a manter o combate até o dia 22, quando acabaria de retirar os feridos. Também o inimigo recuou, parece que obedecendo à mesma ordem.

Morbeck retira do seu arsenal as melhores armas e entrega ao emissário do doutor Mário Correia uns poucos fuzis e Winchester velhas. Aquilo era apenas para dar uma satisfação. Nem tampouco o governo acredita estarem todas as armas ali. É que, homem inteligente como era, sabia que o recurso era acabar com uma luta, em que não tinha vencido e nem vencedor, e que os dois lados estavam dispostos a aceitar uma paz honrosa, como era o caso. As forças do governo se recolheriam, obedecendo a ordens superiores, não perdendo uma luta em campo aberto. E para Morbeck, significava uma vitória recuar em ordem, e receber uma pessoa do presidente do estado a quem deporia as sua armas. Tudo acabado, o doutor Mário Correia divide com os dois chefes guerreiros as duas zonas de garimpo.
Recua Carvalhinho para Poxoréu, deixa os Morbequistas com o Garças e recomenda-lhes: ” Se não são capazes de se unir, dêem fim as hostilidades”. Acontece que os homens de Carvalhinho estão acostumados a andar armados, junto com os policiais, e não querem perder o hábito de serem considerados como gente do governo. Isto para o doutor Mário não existe, para ele todos são iguais.

Carvalhinho está Poxoréu com seus homens de confiança, procurando ver em que pé ficava a sua situação, qual a recompensa que o governo lhe daria. Depois de ter perdido tudo em Santa Rita, encontrava-se na situação de simples garimpeiro.
Esperava pela generosidade do garimpo, quando um de seus homens pegava uma pedrinha e dividiam consigo, no regime de meia-praça. Não podia se conformar com tal situação. É quando o governo, que Carvalhinho julga apoiá-lo, manda destacado para Poxoréu um oficial alheio ao meio. Homem sem ligação com o elemento garimpeiro, com larga folha de serviço prestado e conhecido como oficial mais feio e bravo da polícia do estado, o célebre tenente Telésforo.

Ao chegar a Poxoréu publica editais proibindo o uso de armas nas ruas, sem distinação de qualquer pessoa. Acontece que os homens de Carvalhinho não querem se conformar, estão abituados a estar de mistura com a polícia e se consideram gente do governo, e assim avocam para si essa prioridade.
O tenente não perdoa ninguém, trata de trocar os policiais conhecidos por elementos estranhos ao meio e implanta o regime do umbigo do boi. Manda encomendar ao açougueiro alguns vergalhos, e os manda engraxar para amaciar lombo de cabra valente. Sem escolher cara, vai metendo o pau. Certa feita um estrangeiro, dizem alemão, pois todo estrangeiro no garimpo é alemão, bebeu no boteco e estava garganteando que sozinho brigava com dez brasileiros. A conversa veio ao conhecimento do tenente, que chamou dois soldados, dos mais novos, entre eles o cabo Folha, moleque criado na casa dos meus tios e que sempre falava que ia sentar praça na polícia para ensinar cabra ruim a regra do bem viver, e manda-lhe tirar uma prova se o alemão era bom mesmo. No outro dia o pobre homem estava com o lombo mais fofo do que peixe podre. Se não morreu depois, lhe serviu de lição a surra que tomou.

O coronel Carvalhinho vendo este estado de coisas, e percebendo que o tente não o ouvia, vai a Cuiabá e pede uma audiência ao governo, no que é atendido. Faz a sua exposição. Alegra ter perdido tudo que possuía em bens e dinheiro, e nem amparo para aqueles que tinham sacrificado a vida pela sua, tinha. Isso não era possível, que era homem de família abastada, mas não tinha cara de procurar os parentes. Em última análise de sua situação mostra ao governador: “Veja doutor, eu nunca calcei uma botina dessas e hoje é o que posso comprar, estou na miséria”. O doutor Mário Correia, homem franco, lhe disse: “Não tenho jeito a dar, não posso fazer uma indenização do seu prejuízo, para isso o estado não está em condições. Vá trabalhar que o garimpo lhe ajudará recuperar o perdido. O Morbeck está em Santa Rita nas mesmas condições, no entanto está calado. O que quero é sossego para todos e paz”. Como o coronel insistisse, ele foi incisivo: “Não mandei vocês brigarem, agora tenham calma que o tempo passa” . Como última cartada Carvalhinho lhe pergunta: “E a saída do tenente Telósforo de Poxoréu?” ” Não sei, não conheço bem este rapaz, mas estou informado que é um dos melhores oficiais da polícia”.

Carvalhinho sai errando a porta. Chega em Poxoréu e não conta a verdade a seus homens. Temendo perder o prestigio juntos a eles, procura enrolar as coisas para ver no que fica. Mas os espancamentos continuam, não há preso que não apanhe. Os umbigos de boi já estão ficando moles, é preciso fazer a substituição. O povo começa a apelar para o coronel. As providências do governo são nenhuma. Carvalhinho se desespera. Marca um churrasco, num garimpo fora da cidade, e, lá, fala a seus homens de confiança do que ocorrera em Cuiabá e que o tenente não sairá, mas que pede mais um pouco de calma, enquanto dá mais um crédito de confiança ao governo.

Nesse ínterim, a polícia descarna um dos homens de sua absoluta confiança, foi o estopim.

Carvalhinho reúne os seus homens e decide por a polícia para correr. Depois de tudo planejado, à noite ataca o quartel, onde os poucos soldados de plantão resistem à bala. Um oficial que estava próximo, corre, em roupa de dormir, escapando com vida. Telésforo, que é cabra macho, salta da cama e corre para o meio de tiroteio de revólver em punho, dando tiro à esmo e gritando: “Não entreguem o quartel soldados!” Quando é alvejado, atingido por uma bala que lhe quebra a perna, cai em meio ao caminho. O resto foi feito a punhal.
Terminada a tomada do quartel é escalada uma escolta que deveria ir cortar a linha telegráfica, entre Coronel Ponce e Cachoeirinha, passando primeiro por São Pedro, onde tinha um destacamento de quatro soldados, para toma-lhes o armamento e a munição. Três dos policiais resistiram um pouco, porém um homem, de apelido Canavial, resistiu como um herói que era. Enquanto achou que aguentava o fogo, atirou, até que, vendo a inutilidade da resistência, recuou calmamente, mas sem dar as costas e sem pressa. Foi um dos homens mais bravos desse episódio. A escolta, que era comandada por Oscar Braga, segue para a linha telegráfica para cumprir sua missão.

Enquanto isso, Carvalhinho está senhor da praça em Poxoréu. Reúne as pessoas que querem sair e manda pegar tropa; autoriza que podem requisitar arreatas e roupas nas lojas dos sírios e de alguns brasileiros, poupando apenas o sírio Nicola Chaminé. E assim, no terceiro dia, parte com um grupo de oitenta e tantas pessoas, inclusive mulheres, com destino a Jataí, Goiás.

O governo, ciente do acontecido, autoriza a polícia a persegui-lo, mas Carvalhinho evita passar em Santa Rita, atravessando o Araguaia entre Santa Rita e Baliza. As forças de Mato Grosso atravessam em sua perseguição.

Quando menos espera (Carvalhinho) é surpreendido pela polícia, preso e incontinenti, remetido a Cuiabá. Passando por Poxoréu, a polícia o submete a vexames e sevícias. Levado à Cuiabá, segundo dizem pessoas bem informadas que residiam próximos à cadeia , apanha todo dia.

Coronel Carvalhinho, homem fino e de família tradicional, é rebaixado ao ponto de ter que fazer faxina na cadeia, inclusive carregar a célebre lata, que era até bem pouco tempo o horror dos presidiários. A cadeia de Cuiabá não tinha sanitários e, em consequência dessa falha, os presos faziam as suas necessidades fisiológicas em uma lata, que era tirada por um deles. Então Carvalhinho, como novato e responsável direto pela morte de um oficial, ficou por muito tempo como esse encargo, que muitas vezes se dava mais de uma vez ao dia.

Este é o prêmio daquele que, simplesmente por vaidade, abandona os companheiros com o objetivo de mando, para se tornar superior a esses.

Assim ficou, na cadeia de Cuiabá, até a vitória da Aliança Liberal em outubro de 1930, quando pôde ser revisto o seu processo, pesando-lhe apenas nos ombros o crime federal de ter cortado a linha telegráfica.

Enquanto tudo isso acontecia Morbeck permanece em Santa Rita, mas sem nenhuma função de destaque. Procura voltar a sua fazenda onde sua criação de gado está toda brava devido ao abandono. Procura trazer do Sul o coronel Sergio Brum, gaúcho e ex-chefe revolucionário no Sul de Mato Grosso. O coronel Sérgio traz boa cavalhada e peões adestrados na pega dos “baguais”, que são depois encerrados em piquetes, que são posteriormente levados para Santa Rita, onde são vendidos por preços ínfimos, dado o estado sanitário que se encontram em consequência dos maus tratos recebidos para dominá-los.

Morbeck, que possuía ao pé de quatro mil cabeças, termina não arrecadando nem mil e, por falta de recursos para legalização das terras, vem depois perder a fazenda que hoje valeria um fortuna. Vendo que tudo está perdido, dá o único golpe certeiro de sua vida: adere aos revoltosos de São Paulo da revolução constitucionalista de 1932. Embora nada tenha conseguido fazer de concreto, apenas tenta organizar um batalhão nos garimpos de Aquidauana, onde conta com velhos companheiros do Garças. Mas quando em plena atividade para tal fim, acontece a derrota dos paulistas, sendo obrigado a fugir para sua fazenda, onde fica por algum tempo até que as coisas se pacifiquem. Como não tivesse papel importante naquele movimento armado, não foi perseguido. Mas valeu-lhe a admiração dos paulistas, que o tinham na conta de aliado. Contando com esse apoio e já quase superado no Garças, onde a mentalidade já era outra, mudou-se para Valparaíso no estado de São Paulo, onde vem a falecer anos depois.

Assim termina o homem que foi tão forte em Mato Grosso, tanto quanto o governo, e lutou por um ideal, por muitos ignorado. Foi confundido com os bandidos comuns. Pensou mais nos outros do que em si. Foi honesto até a burrice e por isso morreu pobre. De qualquer forma, tem uma folha de serviços prestados aos seus amigos: os garimpeiros.