Amor e angústia na lírica de Arlinda Morbeck

 

Do Livro: História da Literatura de Mato Grosso Século XX
Autora: Hilda Gomes Dutra Magalhães

 

A mulher mato-grossense sempre esteve presente na vida cultural do Estado. Os registros de Francisco Ferreira Mendes, por exemplo, nos dão conta da participação de mulheres nos elencos do teatro do século XIX. Nos dois primeiros decênios do século XX, a mulher também par­ticipa ativamente da vida cultural do estado, colaborando em jornais e revistas, tendo inclusive criado, em 1916, uma associação literária, o Grêmio Literário Júlia Lopes, composto só de mulheres e que perdurou até 1950, publicando bimestralmente a revista A violeta, órgão de divulgação li­terária.

Em relação à publicação de livros, sabemos que essa era uma ativi­dade rara no início do século e, mesmo assim, um privilégio de poucos, notadamente de homens. Isso explica, pelo menos em parte, o anoni­mato em que permanecem vários escritores e escritoras até hoje. Dentre as escritoras, destacamos Arlinda Pessoa Morbeck. Nascida em Salvador-BA, em 1889, e falecida em Valparaíso-SP, no ano de 1960, viveu em Mato Grosso, de 1911 a 1940, para onde veio logo após contrair bo­das com José Morbeck, nome conhecido pelo seu envolvimento na con­tenda “Morbeck x Carvalhinho”, ocorrida entre os mineradores da zona leste de Mato Grosso, na década de 1920.

Em Mato Grosso, viveu em Cuiabá de 1911 a 1915, período em que seu esposo assumiu o cargo de Diretor de Terras, Minas e Colonização. Em 1915, havendo José Morbeck se desincompatibilizado com o Governo, Arlinda Pessoa Morbeck transferiu-se para Registro do Araguaia, hoje Araguaiana. Em 1924, com a nomeação de José Morbeck prefeito de Alto Araguaia, Arlinda Morbeck mudou-se para esse município, onde permaneceu até 1940.

Havendo dedicado toda a sua vida ao magistério, Arlinda Pessoa Morbeck deixou-nos também uma extensa produção literária, sistematizada em dezoito volumes, entre poesia e crônicas. De toda a sua obra, o único livro publicado é uma coletânea denominada Poesias, editada artesanalmente pelo historiador Valdon Varjão.

Valdon Varjão, após a morte da autora. Em Poesias encontramos temas diversificados, como a família, a Pátria, temas alusivos a datas comemorativas, até textos – propaganda de jornais.

Entretanto, o que se sobressai na poética de Arlinda Morbeck é o caráter confessional da sua obra, que, assumindo, em algumas vezes, o estatuto de memória, e, em outras, o de diário, nos relata os dramas de uma alma fe­minina às voltas com problemas conjugais.

Esse caráter confessional de sua obra acha-se evidenciado no poema que serve de introdução à coletânea de poesias, elaborada pela própria autora:

Não é vaidade, é um desejo somente,

Que tenho de te ver encadernado

Meu fiel companheiro, o confidente.

Dos meus segredos! Oh!… Meu livro amado!

Quantas vezes meus dias tristonhos suavizaste com teu meigo encanto? Precioso relicário dos meus sonhos, que contém os mistérios do meu pranto!

Quantas vezes chorando eu te escreviam deixando nas tuas páginas a confissão da amargura cruel que padecia no deserto de minha solidão?!…

(Rs.p.)

A concepção de literatura de Arlinda Morbeck passa antes por um processo de personalização do livro, visto como companheiro, como confidente. E é através de seus poemas-desabafo que conhecemos a visão do sentimento amoroso que nos é passada na lírica de Arlinda Morbeck.

O amor é, pois, o suporte temático da obra de Arlinda Morbeck, afirmando-se como enigma e obsessão. Zelos materiais ou filiais também tran­sitam em seus textos, todavia com menos intensidade, pois a grande chama que impulsiona a pena de Arlinda Morbeck é de fato o amor conjugai. Ex­pondo as intempéries de um coração aflito envolto em dramas amorosos, a autora denuncia a relatividade da vida e das relações humanas, destilando um sumo amargo que nos possibilita caracterizar muitos de seus poemas como existencialistas, como veremos oportunamente.

Tratando-se de uma poesia essencialmente intimista, as imagens não são tão facilmente definíveis como a pátria exuberante de Dom Aquino ou a Cuiabá de antanho, de José de Mesquita. A poesia de Arlinda Morbeck, soerguida nas emoções, retrata um eu lírico submerso na solidão, nas incer­tezas e na angústia. E é através do mapeamento destas sensações e senti­mentos que o amor é exposto, sob enfoques diversos. O primeiro deles é o amor-ilusão. Nesse caso, o amor é visto por um eu lírico romântico, que concebe o mundo e as relações humanas por uma lente transformadora, como se pode observar, por exemplo, em “Meus desejos”:

Quisera acompanhar-te nos caminhos, seguir-te a todo instante e a qualquer hora, Ouvirmos ao surgir a luz da aurora, o melífluo trinar dos passarinhos, vagarmos pela estrada da Ventura, sem mágoas, sem martírios, sem espinhos!.

Quisera nas florestas seculares, afrontar o gentio, astuto, esperto… mostrar-lhe à tua frente o peito aberto, sacrificar a vida por teus males, sorrir ante o furor de sua seta animar-me ao clarão dos teus olhares!…

(Rs.P.)

O amor não realizado é ainda uma promessa, e essa promessa se de­lineia como um mundo de ilusão e perfeição, remetendo-nos aos sím­bolos perfeitos do amor e da natureza, basilares da estética dos poetas românticos.

Numa segunda versão, o amor se realiza e se afirma numa relação venturosa, como se lê nos dois poemas abaixo:


 

O TRINADO DO SABIÁ

Escutávamos o cantar melodioso do louro sabiá no arvoredo, do rumor do ribeiro vaporoso o sabiá não demonstrava medo!

O sabiá trinava e repetia sua amena canção muito saudosa, depois, para o palmeiral fugia olhando o brilhar da luz esplendorosa!

Sentados no banquinho de madeira debaixo do jambeiro, entrelaçados contemplávamos a planície tão fagueira nos beijávamos, brandamente, apaixonados!

A música dos nossos beijos escutava o sabiá parando de cantar, nós esquecíamos que o sabiá ali estava escutando nós dois a nos beijar!

(Rs.p.)

 

Arlinda!…

Ele me chamava com carinho, com afeto,

sua voz era maviosa, cheia de alegria!…

Nas frondes da mangueira o cantar da cotovia

repercutia-se no outeiro deserto!

Pegando minhas mãos me sentava sobre as areias do terreiro que desenhavam a sombra do rústico casarão ao meu lado sentia pular seu coração e me remirava com um olhar feiticeiro!

Multicores borboletas beijavam as flores do prado, o pardal melodioso nas ramagens cantava,

Ele invejoso as débeis borboletas contemplava

e vinha arfante e temeroso sentar-se ao meu lado!

Arlinda, minha Arlinda, ansioso me chamava.

És minha vida, és minha alegria, és meu amor!

Junto a ti, fogem a mágoa, o dissabor.

E nos meus lábios vermelhos com efusão um beijo depositava!

(Rs.p.)

 

O amor a que se referem os poemas transcritos está ligado à alegria dos primeiros dias da vida em comum, fase que se revela, entretanto, passageira, dando espaço às turbulências da relação conjugai. Nessa terceira etapa, o temor da separação e a dor da saudade começam a povoar as linhas poéticas de Arlinda Morbeck:

 

Despedida

Naquela tarde fria de Novembro,

Tu me apertaste ao teu coração,

Eu soluçava em extrema comoção

Não choravas também, eu bem me lembro!

Caí nos teus braços soluçando, era imensa tua lívida emoção, afagavas meus cabelos e me dizias: Não chores mais, vou e voltarei te amando. –

Beijei tua mão que estava quente, beijei teus lábios com o coração fremente minhas lágrimas me traíram, enfim!

Oh!… Dizias não te entregas ao teu pranto, não crês como eu te adoro e amo tanto?

Sim, vai, mas não te esqueças de mim! ?

(Rs.p.)

 

As imagens tornam-se enegrecidas, e as sensações de prazer e felicida­de são substituídas pela solidão, pelo abandono, transformando os quadros de ventura em sentimentos de tristeza e desalento. É o que lemos, por exemplo, nos poemas abaixo:

 

Dúvida

Tens saudades de mim quando te ausentas para distante ou qualquer lugar? Não acreditas que fico a suspirar nestas angústias que me definham lentas?

A dúvida me acompanha o Pensamento, que foge de mim e vai de procurar na incerteza de contigo se encontrar porque deves estar feliz nesse momento!

Tens saudades de mim que, aqui, lamento tua ausência que me tortura o coração escondido no meu castelo de Ilusão?

A vida é uma quimera, os dias passam, o coração que ama geme aflito!… Tens saudades de mim?… Não acredito!

(Rs.P.)

 

Desalento

Se é pecado, meu Deus, eu amar tanto.

A alguém que me contempla com desdém,

Sinto meu infeliz coração padecer no pranto

Da desventura de um amor que torturar-me minha alma vem!

Perdoai este meu grande pecado,

Que suplicia minh’alma amargurada!

Perdoai!… Eu vos peço contrita, ajoelhada,

Deixai-me cumprir os rigores do meu Fado!

Um sigilo me atordoa o pensamento, na sensação do meu padecimento, no delírio de minha comoção!…

Perdoai meu Deus!… Se amo tanto!… e não posso conter o martírio de meu pranto que traz a Dúvida no meu isolado coração!!

(R.s.p)

 

Quando a tarde, desmaiando, tu foges do meu olhar, eu quero te procurar e fico sozinha cismando! (Rs.p.)

 

 

Não me amas! …

Não queres me amar não te obrigo o amor é espontâneo, nasce no coração floresce no jardim de uma ilusão onde o Zéfiro é seu sincero amigo!

Não quero que sejas meu inimigo porque te amo e sofro com emoção sentindo do teu olhar a recordação pois teu vulto atraente está sempre comigo!

O meu Segredo a ninguém eu digo por minha senda escabrosa eu prossigo ele é meu vigoroso companheiro

Ele me traz a doce Ilusão de viver contigo

embora não me queira, não te obrigo

o Amor que nasce no coração é o único verdadeiro.

(Rs.P.)

 

Deslumbramento Cúmulos pesados toldam o horizonte, Apoio se recolhe no sombrio firmamento. Por entre os ramos passa zumbindo o vento, eu pensativa remiro teu semblante!

Dezembro vai chegar!… A tarde neste instante Se esconde no ocaso nublado, quente ainda! E a última tarde de Novembro que se finda Levando as esperanças do meu coração amante

Tu me olhas tímido com incrível indiferença,

procuras apagar aluzda minha crença, que tenho neste Amor que no meu coração nasceu É difícil esquecer-te, por que vivo te amando ? e este Amor infeliz remoça meu ser alimentando com a ternura que tens no olhar teu!…

(Rs.p.)

 

O amor não é mais correspondido e o eu lírico, escravizado por um amor-suplício, tem plena consciência da unilateralidade do amor na relação. A ausência do ser amado, a sua indiferença, a imperativa presença do triângu­lo amoroso, a luta do eu lírico para sobreviver à solidão e ao desamor nos apresentam uma faceta negra da relação conjugai. Observa-se ainda nos textos a luta inglória do eu lírico, que quer se libertar desse sentimento escravizante (“É difícil esquecer-te, porque vivo te amando?”), mas não o conse­gue (“Sei que a alguém tens amor/ mas meu olhar te procura”).

A aceitação do amor platônico é uma maneira de sublimação da dor, de o eu lírico tentar se manter protegido do sofrimento. Anestesiada a dor, o eu lírico pode agora novamente olhar-se e ao mundo. Entretanto o que esse olhar vê é um mundo em que tudo é relativo, inclusive os sentimentos. A realidade, que era percebida dolorosamente nos poemas da fase anterior, passa a ser vista de uma forma mais racional, conferindo aos textos o tom pessi­mista que caracteriza a literatura de cunho existencialista do século XX. É o que se lê em “Tudo passa”:

 

Tudo passa

Quando fico muito tempo a meditar nos momentos felizes que gozei quando teus olhares contemplei sentindo meu coração a palpitar!

Quero esquecer-te, não quero recordar, essas horas agradáveis que passei

Das quais jamais me esquecerei, e esta lembrança vem me atormentar!

Se fui feliz eu não posso acreditar os meus ideais vieram me acordar no reagir de minhas comoções!

Minha Musa quis meu sonho acalentar no meu sonho procurou me afirmar que tudo passa-a vida é uma ilusão!!…

(Rs.p.)

 

Liberto da tirania do amor, o eu lírico assume um tom filosófico e pes­simista:

Não há quem possa no mundo Compreender o Amor, ele é tirano, é profundo, é zombeteiro, é traidor!…

Se apodera com ousadia de um sensível coração, roubando sua alegria e trazendo-lhe a Ilusão!

Quando percebe que a vítima está, loucamente, apaixonada, nas torturas de uma Dor íntima confirma que é desprezada!…

Zomba do suplício das dores que o coração faz adoecer traz do Amor os dissabores de que não o sabe esquecer! (Rs.p.)

Enfrentadas todas as fases do amor, do seu surgimento à sua decadên­cia, o que se percebe é a constatação da relativização dos sentimentos hu­manos. Entretanto o ser não sucumbe. Ao contrário, após a dissolução dos vínculos amorosos o amor renasce, mostrando a sua força e a relatividade dos sentimentos, como podemos constatar em “Sem nome”:

 

Seu nome

Nunca pensei que no mundo, pudesse amar outra vez, pois meu coração está coberto

com o manto da viuvez.

Mas um dia, escutei palmas, bateram no meu portão, fui receber quem chegava eram o amor e a Ilusão!

– Porque vieste aqui, eu nunca te convidei? Disse zangada e aflita és ousado, eu bem sei!

– Venho rasgar este manto que cobre o teu coração, pois sei que estás ocultando um Amor, uma Afeição!…

(Rs.p.)

No texto acima, a evidência do ressurgimento do amor atesta o reini­cio do ciclo amoroso, a partir da ilusão. Com esse poema o eu lírico conclui também suas reflexões sobre a experiência amorosa, apresentando-nos a radiografia de um coração sensível e amante, com suas paixões, suas dúvidas, seus temores e suas desilusões.

Não encontramos em Arlinda Morbeck a erudição e a poesia altaneira de Dom Aquino ou a frieza racional nem tampouco a literatura de cos­tumes de José de Mesquita. Também não se verifica em seus textos a ob­sessão da métrica perfeita e muito menos o distanciamento eu lírico/ob­jeto. Em contrapartida, temos uma linguagem expressiva, que flui com clareza e facilidade, fazendo com que as emoções surjam de modo contundente aos nossos olhos, o que atribui à obra de Arlinda Morbeck uma feição pe­culiar e a difere dos autores já analisados. Arlinda canta o amor e a angús­tia e é através destes dois emblemas que consegue desvendar, como ne­nhum outro poeta de sua época, a alma feminina perdida em paixões, in­certezas e desilusões.