O recém descoberto garimpo do ribeirão das Pombas, no futuro município de Poxoréo, revelou-se de uma prodigalidade fabulosa. A notícia de suas abundantes gemas preciosas atraía mineradores das mais distantes regiões do país, além de estrangeiros, a maioria dos quais sírios, que já chegavam abrindo casas de comércio. Era pouco tempo os povoados de Pombas e dos Sete estavam abarrotados de gente.

O enriquecimento rápido enlouqueceria os garimpeiros que logo se envolviam com a farta bebida alcoólica de várias qualidades, com as mulheres, com as festas dos cabarés e com o jogo.

Naquela alucinação quase coletiva, enquanto uns ficavam dóceis, prestativos e cordiais, outros já se manifestavam melindrosos e hostis, enfurecendo-se por qualquer motivo ou tornando-se inconvenientes e provocadores, o que, algumas vezes, gerava brigas e até mortes. Era a metamorfose satânica que invadia os cabarés e apoderava-se dos laboriosos, porém incautos garimpeiros.

Ocorreu que na noite do dia 21 de dezembro de 1924, no fragor das baterias de um cabaré de São Pedro, no futuro município de Poxoréo, quanto os músicos tiravam de seus instrumentos os melhores acordes e os casais rebolavam freneticamente, envolvidos na volúpia da atmosfera mundana, eis que surge uma briga, acontecimento muito comum naquele ambiente.

Ocorre porém, que um deles era baiano e o outro maranhense, o que faz com que dois grupos locais se formassem, um grupo de baianos e um grupo de maranhenses, cada grupo protegendo o seu conterrâneo. A briga era por causa das atenções de uma mulher de nome Caboclinha, que ambos disputavam a preferência. Depois de alguma discussão, tudo voltou à normalidade.

No dia seguinte porém, um grupo de desordeiros, que nem chegou a dormir à noite, chefiado pelo valentão Chiquinho (baiano), saiu em busca do acampamento dos maranhenses, localizado no povoado de Alcantilado, próximo de São Pedro. Na saída do povoado, já no final da rua, o grupo encontra-se com um bolicheiro maranhense, sem camisa, sentado em frente ao seu estabelecimento comercial. Chiquinho, em voz autoritária e ameaçadora, recomenda-lhe: “Vá vestir a sua camisa; nós estamos indo matar uns maranhenses no Alcantilado e quando voltarmos, se você estiver sem camisa, vai morrer também”. O bolicheiro nem chegou a considerar a ameaça, tão absurda esta lhe parecia. Preferiu tomá-la como brincadeira.

Chegando ao povoado do Alcantilado, sorrateiramente o bando cercou os barracões dos maranhenses como se fosse uma operação de guerra. Entrincheirados e bem posicionados, sem que os maranhenses sequer se apercebessem, começaram a atirar e a gritar como possessos. Sem tempo e condições para qualquer defesa ou reação, os maranhenses foram todos mortos sem provocar uma só baixa no grupo de covardes desordeiros.

De regresso, atacaram outras barracas de maranhenses e no povoado de São Pedro Chiquinho e seu grupo encontraram o bolicheiro ameaçado, ainda sem camisa, e cumpriram a promessa, matando-o também.

 

“Depois da barbárie, a horda, engrossada rapidamente por outros desordeiros, entrava em São Pedro onde já reinava intenso pânico, resultante do morticínio dos indefesos maranhenses”.

Ninguém ousava protestar contra o barbarismo, temendo a represália do grupo de desordeiros armados até os dentes.

Ao todo, dezoito maranhenses foram mortos no impiedoso massacre, e os demais se arregimentaram, mais para se defender do que mesmo para atacar, pois apesar de bravos e corajosos, eram muito inferiores em número. Entretanto, a rivalidade criada aí perdurou por muito tempo e cada vez que um baiano inadvertidamente caía nas mãos de um grupo de maranhenses, longe de um possível socorro, era espancado e às vezes até morto; o mesmo acontecia se um maranhense caísse nas mãos dos baianos em circunstâncias semelhantes.

Para identificar o infeliz descuidado, para saber se era baiano ou maranhense, era mandado ao desconhecido dizer o nome dos ossos do tórax até chegar nas costelas. Se o indivíduo dissesse “custeia”, era identificado como baiano e se dissesse “costela”, era identificado como maranhense.

O terror e a insegurança passaram a assombrar os moradores de São Pedro, muitos dos quais se mudaram de lá, fugindo amedrontados.

A seguir, transcrevo carta remetida pelo moço maranhense, Sr. Ondino Rodrigues de Lima, ao poderoso Chefe do Garças, Dr. José Morbeck, no dia posterior ao da chacina dos maranhenses em Alcantilado no córrego das Pombas.

Com o auxilio de lentes e de parentes do signatário da carta, o autor do livro fez a leitura desta cujo teor vai.

Córrego das Pombas, 23 de dezembro de 1924

Exmo. Sr. Dr. José Morbeck

Meu caro é meu desejo que vos encontre e a sua família em pleno gozo de saúde.

Tem esta por fim comunicá-lo a maior das minhas infelicidades, na manhã de vinte e dois, um grupo de bahianos de acordo com os chefes (ilegível) o Quinco que está dando noticia de terem barbaramente assassinado três ou quatro maranhenses e gritando por toda a parte que reunissem os baixa ferro, descessem até o Alcantilado, nosso acampamento distante mais de dois kilômetros encontrassem nosso pessoal almoçando em toda a calma, porque ignorava fossem assassinados com a máxima selvageria, o Agostinho nosso irmão, o tio Zuza e mais quatro companheiros de barraca e ainda não posso afirmar se terão sido somente estes porque faltam dois dos filhos do tio Zuza e quatro companheiros que estavam no barracão e que não foram encontrados até esta hora, os quais ignoro, onde foram vivos ou mortos, e nem procurá-los posso porque corre com viza de verdade que tal grupo pretende me incluir e ao Leonardo no rol das vítimas, não tenho expressões para esclarecer o banditismo com que tais desordens foram praticadas, somente o jovem Casteliano e Salvador Hora se revoltaram contra tal procedimento. E incrível mas infelizmente é verdade. Os homens depois de assassinarem os rapazes picam os cadáveres a punhaladas e ainda detonaram carabinas nos rostos que chegaram a queimá-los o fogo da pólvora. Com esta comunicação não posso nem implorar o vosso auxílio porque quando esta chegar se eu não me defender já estarei no número dos mortos, é somente para vos por a par destes tristes acontecimentos. A diferencia que existia entre eu, meu irmão e meus primos é porque eram ingênuos, o filho cassula do tio Zuza. Amadeu já é sabido que saiu no mundo esguaritando e horrorizado, não sei onde esta criança irá se parar com este terror, tudo isto que vos esclareço não tem nada de alarme, é a realidade, bem sabe que não aumento história. A minha demora aqui é somente saber dos nossos infelizes primos que não sei o resultado, só isto faz-me a retirada desta pequena faixa de Mato Grosso e da sua chefia.

Peço recomendar a D. Arlinda, ao Rodolfo e D. Tutu. De V. Exª Att. Cr°.

Ondino Rodrigues Lima

Felizmente ou infelizmente na hora eu estava fora da barraca.

Abaixo, carta de dona Arlinda Pessoa Morbeck, esposa do dr. José Morbeck, com referência a carta de Ondino Rodrigues Lima, contando a reação e providências tomadas pelo grande chefe dos garimpeiros. Logo a seguir a cópia datilografada deste documento facilitando a compreensão do leitor

“Diante das expressões desta carta, José Morbeck tendo na frente o selo nobre do amigo verdadeiro, segue urgente num automóvel com três amigos armados a fusil, na ânsia de poder ainda salvar a vida de Ondino Rodrigues, aquele moço singelo de caracter verdadeiro que ele conhecera em Registro do Araguaia, dando-lhe como pequeno auxilio, trabalhos na sua Fazenda Patagônia.

Eram oito da manhã e ainda estávamos sonolentos, porque tínhamos passado a noite em animadíssimo baile na casa do Serafim de Carvalho onde morava Candinho e realizava o casamento de sua pupila Joana.

Com os olhos inundados de lagrimas, abracei o meu Morbeck que me beijou na face, indo até o berço de sua filhinha Dirce, com três meses de idade, depositar-lhe também um beijo, na cabecinha inocente.

Sr. Ondino Rodrigues de Lima, pai do ex-deputado Pedro Lima, foi o signatário da carta endereçada ao Dr. Morbeck relatando parte da chacina dos maranhenses.

Todo empenhado em vingar a causa de Ondino Rodrigues, ele falou no meio dos seus amigos que enchiam a sala assistindo-lhe a partida: “Nesta hora sou um homem solteiro, não tenho mulher, não tenho filhos, serei um monstro, sacrificarei tudo, a vida por esta causa das Pombas”. Seus filhos: Walton, Newton, Milton, Circe, Nilce, Clinton, Elce, lhe olhavam espantados. E ele dando um beijo na testa de um por um, entrou no auto. Calçava botas e roupas de palmebiche escura.

E eu, fiquei chorando, rezando ao meu glorioso S. José, sentindo na face ainda o seu beijo quente, beijo que me deu, junto ao berço da filhinha adormecida.

Aquele sacrifício era feito por José Morbeck, o homem de tempera de aço, o homem raro entre os homens, que ia defender a causa de Ondino Rodrigues.

Santa Rita do Araguaia – Arlinda Dezembro de 1.924″

Posteriormente, graças à escolha de Ondino para comandar as suas tropas combatentes, Morbeck conteve a evasão dos maranhenses que pretendiam deixar em massa o território do Garças, ainda em conseqüência do massacre dos maranhenses em Alcantilado das Pombas.